Necessariamente linda


Lá estava o Carlos, abraçado à menina, preparando o terreno pra cantada. Beijo carinhoso, abraço terno. Respostas atenciosas ao que ela dizia. Tudo orquestrado perfeitamente. A jogada, decidida no dia anterior. Uma pesquisa diferenciada para aquela ali. Graduanda de filosofia, toda intelectual, Carlos sacou logo: não podia usar qualquer coisa.

Chegou o ponto em que o silêncio durou tanto quanto deveria. Pensou consigo mesmo: é agora! Uma referência de gênio pra ganhar a racionalidade da moça. Olhando em seus olhos, acariciou-lhe o rosto delicadamente com uma mão enquanto a segurava pela cintura com a outra e sussurrou:

– Meu bem, David Lewis pode até estar certo… Podem existir outros mundos e, em alguns deles, podem existir outros “eus”… Mas te garanto que, em todos os mundos possíveis, você continua linda…

– Ownnnnnnnn…

Pronto. A filósofa estava ganha. E, pra fechar com chave de ouro:

– É sério, pode acreditar… Nem uma realidade alternativa diminuiria isso. Sua beleza não é só possível, menina: ela é necessária.

– Que lindooo! Então você tem uma opinião formada sobre a discussão das contrapartes?

Espera aí…

– Hein?

– Sabe como é, aquela velha história, será que você vai ser o mesmo em outros mundos? Será que isso é possível? Já que, pelo menos em uma coisa você vai se diferente, estando em outro mundo que não esse e tal. Um predicado de lugar esse do existir em um mundo possível, mas será que isso não altera nossa identidade pessoal? Será que, nos outros mundos possíveis, vai ser você mesmo, ou só uma contraparte sua?

– Como é?!

– Você não sabe do que eu estou falando?

Ferrou.

– Ah, claro que sei… É… Se os outros “eus” serão realmente… Hum… Bom, claro, eu seria o mesmo… É… Bom, é o que eu disse, e…

– Sério? Então, como você resolve o problema da identidade transmundial?

Pasmo, Carlos encarou a menina. Identidade transmundial? Mas que m… Procurou na mente algo com o que responder. Branco total.

Maldito David Lewis.

– Puta que pariu, meu bem, será que você não podia ter parado no “own” não?!

Pouco depois da sua jogada de mestre, foi para casa, puto da vida. De uma coisa estava certo: da próxima vez, não usaria a Wikipédia pra preparar uma cantada.

Ele não tem medo de voar

Direto para o céu, em nenhum momento ele sentiu medo. O garoto era puro contentamento, enquanto seus olhos azuis refletiam a lua e a inconsciência das misérias desta vida.

Eu joguei o garoto. Ele adorou ser erguido e solto no ar por um segundo, para, seguro, pousar em meus braços novamente. Nem um mínimo de desconfiança, nem um traço de receio. Um ano e meio de fé na vida e no ser humano. Porque eu sorria pra ele, ele sorria pra mim, e foi o suficiente. Uma risada plena e despreocupada encheu o ar por alguns minutos, enquanto eu me deliciava com tanta felicidade ingênua.

O dono daqueles olhos azuis mal sabe falar e já fez o que todos nós sonhamos um dia: voou. Por um momento, esteve no ar e não se preocupou em cair, exatamente o impossível para mim. Não ter medo de cair e se machucar, eis o sonho… Pudéssemos nos jogar sem olhar para baixo, as asas existiriam. Pudéssemos fazer isso, em nossas mentes não haveria gravidade.

Repeti a brincadeira algumas vezes e nunca mais esqueço aquela risada pura, o tempo todo preenchendo a noite quente e cheia de nuvens. Quase chorei de alegria, mas senti o toque amargo de desencanto que viria junto às lágrimas, então me contive. Bendito seja o menino.

Queria eu ter ingenuidade suficiente para voar. Não consigo. Não mais. Já cortaram minhas asas, e a gravidade tem o inescapável peso desses anos de amargura. Quis chorar outra vez, novamente me contive. Lágrimas impuras não fariam jus ao momento.

E continuo me segurando. Consigo deixar de lado o desencanto, não consigo esquecer o medo de que um dia você caia. Parece inevitável: um dia, todo mundo é jogado no chão. E isso me angustia. Odeio pensar no dia em que você não vai mais se permitir voar. O dia em que você olhará pro chão em vez da lua, desconfiando dos braços que prometem segurança. Um dia triste, triste demais.

Ainda te ajudo a voar. Continuarei enquanto puder. Ainda vou arrancar aquele sorriso mesmo depois dele passar a ter, também, uma ou mais notas de desencanto. E sempre lembrarei o extraordinário talento que você tinha, amargando não me lembrar se eu tive isso também.

Voa enquanto pode, garoto, porque a gravidade sempre vence.

Um dia a casa cai.

Um dia o medo vem.

Telepatia

Marta e Rodolfo gostam de se sentar na sala quando chegam do trabalho, onde tomam juntos um drink. Pra aliviar o stress do trabalho. Ela bebe sempre um martíni seco; ele, uma dose de uísque. Normalmente ficam em silêncio, mas às vezes falam da vida.

Naquele dia, falaram da vida.

– A vida é interessante… – disse Marta, pensativa.

Interessante” não é a palavra certa. Eu diria que ela é intrigante – respondeu Rodolfo, mais ou menos desatento.

– É, talvez… Intrigante…

Silêncio. Um gole do uísque, outro do martíni.

– E, então, o que você acha? – perguntou Marta, exasperada.

– O que eu acho do quê?

– Deus existe ou não? Tô repetindo a pergunta há um tempão.

– Não ouvi. Tem certeza que falou alguma coisa?

– Mentalmente, Rodolfo. É óbvio.

Claro.

– Lá vem você com essas besteiras de novo. Telepatia. Deixa de ser idiota, isso não existe.

– Claro que existe. Você fala isso porque não tem a mente aberta.

– Eu falo isso porque é irracional. Telepatia! Quanta besteira.

– Pra você, pode até ser. Eu sei que é possível. Mas deixa pra lá.

Calaram-se. Marta ligou a TV, mas não teve ânimo de assistir nada e desligou o aparelho. Rodolfo continuou:

– Não sei se Deus existe. Acho que não. Mas não dá pra saber. Você deve acreditar, já que está no ramo da telepatia.

E riu com gosto. Pensou que aquela tinha sido uma ótima piada. Realmente, muito espirituosa.

– Não vejo a ligação nisso aí.

– Como não? Se Deus não existisse, tudo seria como os materialistas dizem. Não existe telepatia no mundo deles. Sem almas e tudo o mais.

– É, acho que não. Mas a gente pode ter almas, mesmo sem Deus. Se esse mundo pode ter surgido sem um criador, um mundo além desse também não poderia?

– Mas é claro que n… Ah, que idiotice. Você me irrita com perguntas como essa.

Mais silêncio.

– Como está esse martíni? Um dia, ainda experimento. Ah, você tem que lembrar de pagar o aluguel amanhã…

– É definitivamente possível que a gente tenha almas mesmo que Deus não exista.

Rodolfo começou a lamentar a perda de uma noite calma e livre de metafísica.

Mas, já que estou aqui, vou até o fim”.

– E quem criou essa alma? Teria que haver um deus para criar nossas almas.

– Quem criou o seu corpo?

– Meus pais e a natureza, ué. Você sabe como funciona.

– “Você sabe como funciona”. Não, Rodolfo, não sei. Acho que é aquela história da cegonha, não é? Essas suas ironias te fazem parecer muito estúpido às vezes. Enfim, outra pergunta: quem criou o universo?

– Ninguém. Pelo menos eu acho que não foi ninguém.

– Então a alma poderia existir sem ter sido criada.

– Que besteira! A alma existir, mesmo que não haja um deus. Isso é…

Por um segundo, Rodolfo vacilou. Sentiu-se fervilhar por dentro. Que assunto interessante! Melhor mesmo é uma noite com metafísica, muito mais instigante. Essas discussões tão acirradas, o debate, a troca de argumentos, as tentativas de refutação! Há quanto tempo não experimentava isso? Que maravilha!

Quando Rodolfo já se preparava para replicar, Marta se levantou, dizendo:

– Mas isso também não me interessa muito. Estou aqui só para experimentar. Se realmente existir algo do outro lado, penso nisso quando chegar lá. Vou pagar o aluguel amanhã, fica tranquilo, não vou esquecer.

Atônito, Rodolfo respondeu:

– O quê?! Você está brincando, né? Agora que eu comecei a me animar com a discussão, você não quer continuar?

– Eu tô cansada. Vou pra cama.

– Mas… Então por que você me perguntou sobre a existência de Deus se não se importa?

Marta pegou seu copo na mesinha em frente ao sofá sem pressa e tomou o último gole do seu drink. Condescendente, olhou para Rodolfo e respondeu:

– Isso é óbvio, meu bem: eu estava só testando minha capacidade telepática.

E foi para o quarto dormir.

Bichinhos

A mamãe brigou comigo de novo e eu fiquei muito nervoso. Não gosto quando ela faz isso. Dá vontade de brigar também.

Tudo porque fiquei comendo doce em vez de estudar. A professora chamou ela na escola e disse que eu sou um aluno muito distraído e só fico falando coisa estranha. Disse mais, ela que não quis me contar. Deve ter sido sobre o menino da escola, que ficou chorando no outro dia depois de mexer comigo e levar pedrada.

Me pôs de castigo e mandou fazer o dever, mas eu sei onde ficam os doces e não ia perder a chance. Aí, ela me achou no sofá com um saco de balinha e me bateu. Me deu um tapa na cara mesmo, doeu pra caramba. Não devia ter feito isso.

Queria que eu estudasse, então eu estudei. Aprendo tudo quando quero, até mais do que me pedem pra aprender. Principalmente isso. Tem coisa que criança não sabe, mas eu aprendi do mesmo jeito. A professora viu isso umas vezes. É bom aprender algumas coisas, dá pra se divertir muito, embora ninguém veja graça, só eu.

Não usei doce porque não ia servir. Peguei comida da geladeira mesmo. Quando tava voltando da escola, escondi num lugar da rua que ninguém limpa nem vê. Assim que ela saiu pro trabalho, depois de me pedir desculpa pelo tapa (como se isso fosse valer alguma coisa pra mim), fui buscar a comida e espalhei pela sala junto com o lixo da cozinha.

Eles tavam tão grandes! Fiquei feliz olhando pros bichinhos. E imaginando.

Aí esperei.

Quando a mamãe abriu a porta sentiu o cheiro. E gritou comigo, dizendo que eu tinha deixado comida estragar. Fiquei morrendo de raiva. Ela esqueceu o arrependimento rapidinho, né? Mas eu não ia apanhar de novo. Não mesmo. Então joguei uma pedra na cabeça dela. A mesma do menino da escola. Só que, com ele, era brincadeira. Nela, eu joguei com mais força, pra fazer desmaiar.

Desmaiou.

Ela lá, caída no chão, e eu empurrei os bichinhos pra perto com a vassoura.

Mas não pensei direito. Ela acordou e começou a gritar. Gritava, gritava, muito alto! Fiquei olhando os bichinhos, que já estavam entrando pelo nariz e pelas orelhas, felizes, e ela gritando, gritando, tentando afastar eles e eu fui ficando muito nervoso com tanto barulho. Era pra ser uma coisa em silêncio, só pra me deixar satisfeito! Era pra me divertir e pra ela aprender! Aí eu peguei a pedra de novo e bati um monte de vezes na cabeça dela, até o silêncio voltar. Fez uma sujeira danada, mas ela calou a boca. De tão surpresa a mamãe nem tentou reagir.

Eu já tava muito cansado daquilo tudo e pensei: ufa, agora posso comer doce! Peguei o saco de balinha e fui pro quarto, porque senti preguiça de limpar a bagunça. E não tinha motivo pra ter pressa, porque ela não ia mais reclamar de nada.

Aposto que a mamãe estaria orgulhosa de mim agora, porque eu aprendi como fazer bichinhos. Amanhã, ficaria mais ainda, quando visse a casa limpinha. Aposto que ela não iria mais me bater, se tivesse a chance.

Mas isso não importa de verdade. O melhor é que as balinhas estavam mesmo muito gostosas.

Uma conversa amigável

Reencontraram-se cinco anos depois. Surpresos, cumprimentaram-se efusivamente. Eram grandes amigos: se não mantinham contato há tanto tempo, é porque a vida tem dessas coisas, os encontros e desencontros tão falados pelo poeta. Mas, de longe, haviam conservado o afeto. Certas amizades são assim: nem choram a dor da distância nem se extinguem. Estáveis como quase nada neste mundo, contentam-se em existir, sem exigir nem mesmo a saudade, que pareceria natural; continuam vivas, eternas por não serem percebidas. Nem ameaçadas.

– Como você está, Alberto? Quanto tempo, rapaz! – disse Caio, sorrindo.

– Muito tempo mesmo!

– Perdemos contato, uma pena…

– Pelo menos, nos encontramos hoje. Graças a Deus viemos nessa festa do Renato! Vamos recuperar o tempo perdido.

A conversa prosseguiu. Cinco anos era tempo demais, tinham tanto a contar! Grandes novidades em suas vidas: Caio se formara em Medicina. Agora, exercia o ofício num hospital perto de casa. Não, não arranjara nenhuma namorada, continuava muito arisco, mulher nenhuma conseguia fisgá-lo. Mas, sim, estava muito feliz.

Alberto casara, tivera um filho e passara por algumas dificuldades financeiras, mas sua situação ia melhorando aos poucos. Agora mesmo, sua vida já estava mais tranquila. Pensava até em começar uma graduação, sempre tivera o sonho de frequentar uma universidade, quem sabe não seria o momento certo? Tinha outros motivos para isso também. Aliás, Caio provavelmente sabia o motivo, não era tão difícil adivinhar…

– Que motivo é esse? Ganhar mais?

– Nada disso – respondeu Alberto, sorrindo – Até que estou bem. Não tenho curso superior, mas sou dedicado e sempre me viro. Como disse, minha vida está mais tranquila agora.

– Então o que é? Afinal, que curso você quer fazer?

– Não é óbvio, Caio? Eu quero cursar Teologia.

O constrangimento se estabeleceu de imediato.

– Teologia…?

– Mas é claro! O que você esperava que fosse? Estudar a Palavra, sempre!

– Alberto…

Caio não sabia o que dizer. Ele continuava do mesmo jeito…

– Olha, Alberto, acho que você não percebeu, mas eu não acredito nisso – soltou Caio de uma vez, sem perceber que sua frase não faria sentido para o seu interlocutor.

– Não acredita em quê?

– Na religião, Alberto. Na sua religião.

Alberto arregalou os olhos.

– O que você quer dizer com isso? Você é católico também.

– Não, não sou. Eu sou ateu, Alberto.

O silêncio, carregado de uma tensão palpável, seguiu-se àquelas palavras. O ânimo de Alberto foi mudando. Do olhar amistoso passou à expressão desconfiada.

– Ateu? É brincadeira, né?

– Não, não é brincadeira.

Alberto exasperou-se. Ateu! Caio, um ateu! Não conseguia acreditar. Toda uma vida de amizade e agora que deixavam de se ver por algum tempo ele vinha com essa?! Ateu! Então a educação recebida não tinha sido suficiente? Os exemplos, a pregação? Será que ele era tão ingrato a ponto de não acreditar no sacrifício do Filho de Deus por ele, por toda a humanidade? Alberto contorcia-se por dentro pela declaração de Caio. Da desconfiança passou à indignação.

– Não é possível! Logo você! Eu sei que você tinha dúvida, mas resolveu todas, não se lembra? Ao fazer a primeira comunhão? Você mesmo me disse isso, que tinha encontrado sua fé. Como vem me dizer agora que não crê, que é ateu?

– Alberto, eu disse aquilo pra não arrumar confusão com você e com a minha família. Fiz a primeira comunhão e declarei minha fé pra ninguém encher meu saco. Mas eu não sou católico. Não acredito em nada disso, simplesmente não faz sentido pra mim!

– Não posso aceitar uma coisa dessas! Nós crescemos juntos, irmãos de fé, e agora você vem me dizer que não acredita na Igreja. Me diga, e todas as vezes que você tomou a hóstia, você esqueceu aqueles momentos, aqueles momentos sagrados?

– Não foram sagrados para mim. Eu tomava a hóstia para seguir o protocolo. Tudo que fiz nessa religião foi por obrigação. Assim que pude assumir minha descrença, fiz isso. E estou feliz por ter feito.

Alberto encarava Caio com uma expressão de intenso desagrado. Não podia crer que o amigo tinha se deixado levar por aquele tipo de pensamento. Quando mais novos, Caio declarara o fim de suas dúvidas. Alberto o convencera, lembrava-se disso. E, talvez… fosse justamente isso! Precisava fazer a mesma coisa novamente, mostrar a ele a Verdade.

– Caio – começou Alberto, amaciando a voz, antes exaltada – Você só está confuso. Isso já aconteceu antes, não se lembra? Éramos pequenos e você duvidava da religião. Mas logo você viu que eram dúvidas sem fundamento, que a Verdade estava com Cristo. Que a Verdade é Cristo!

– Não, Alberto! Eu nunca acreditei. Todas aquelas dúvidas continuavam comigo, e se eu fingi ter me resolvido, foi pra evitar problemas.

– Eu sei que você está querendo se convencer disso. Mas não é assim e você sabe. Deus existe e ele se fez carne para morrer pelos nossos pecados e…

– Mas que inferno, Alberto! Não é possível que você acredite numa besteira dessas! Jesus morreu na cruz porque um dia Adão e Eva pecaram, é? Que culpa eu tenho disso? E como você acredita nessa história de Adão e Eva, de maçã, serpente, e todas essas idiotices? Que espécie de pecado é esse?! Fico impressionado que você continue fiel a essa doutrina de ilusões. Pensei que fosse criar um pouquinho de bom-senso com o passar dos anos

– Bom senso?! Eu não tenho bom senso?! Doutrina de ilusões?! Você é o iludido daqui, Caio. Não posso acreditar que você tenha se rendido a esse discurso ateísta. Isso é tentação do demônio!

– Claro que é. Pena que Deus não se importou em me fazer uma visita com as boas-novas demoníacas. Deve estar ocupando fazendo filho em alguma virgem por aí.

Naquele momento, já tinham se tornado o centro da atenção. A festa inteira assistia à discussão acalorada.

– Não fale desse jeito! Pois todo aquele que negar o Senhor…

– Ah, cala a boca. Não vem querer citar a Bíblia pra mim, e ainda mais citando errado.

– É a Palavra de Deus, Caio. Algo que você não poderia entender, porque está sob o domínio do Diabo!

A reação das pessoas que assistiam a briga variava. Uns sentiam-se constrangidos, olhando para os lados com sorrisos amarelos; outros ignoravam completamente o que acontecia. Havia ainda os que se divertiam imensamente e esperavam o próximo insulto. Tomavam lados. O circo estava armado.

O dono da festa, no entanto, não fazia parte de nenhum desses grupos. Observava em silêncio a discussao. Os dois trocavam insultos cada vez mais pesados e pareciam prestes a se engalfinhar numa guerra santa particular quando foram interrompidos pelo anfitrião:

– Vamos parar com essa discussão idiota.

A voz saiu calma, controlada.

– Hoje é meu aniversário. Eu chamei vocês porque são amigos meus e eu sabia que já se conheciam. Quis que se reencontrassem, me disseram que vocês tinham uma amizade muito bonita. Parece que me enganaram.

Alberto foi o primeiro a responder:

– Renato… Me desculpe, perdi o controle. Eu… Eu só não esperava que ele tivesse se deixado levar por essas ideias falsas. Ateísmo, isso é tão…

– Ora, mas eu estou muito feliz com minhas ideias, que, para usar a expressão certa, são claramente verdadeiras – rebateu Caio, hostil – Você é quem continua iludido pelo conto da carochinha, a historinha da maçã, e…

– Parem – interrompeu Renato, antes que Alberto revidasse – Olha, eu convidei os dois, e não ligo nem um pouco pro que quer que vocês acreditem. No meu aniversário, isso não importa. Deus, se existe, está convidado pra festa também. Ele, pelo menos, deve saber se comportar.

– Renato! – exclamou Alberto, estarrecido – Como você pode falar desse jeito de Deus? Eu…

– Ele ficou magoado, Renato – zombou Caio – Falar mal do personagem de RPG dele é ofensivo…

Renato perdeu o controle.

– Os dois podem ir embora, por favor – falou, alteando a voz.

Começaram a protestar ao mesmo tempo. Não é possível, como assim ir embora? Eles se desculpavam pelo ocorrido, apenas perderam a cabeça pelo que tinham escutado. Como não se descontrolar com as bobagens escutadas, ainda mais vindas de quem vieram!

– Me perdoe, Renato. Eu vou simplesmente me afastar dele. Não convivo com ateus. Não pode ser boa pessoa se não acredita em Deus. Mas não quero estragar sua festa…

– Você já quase conseguiu isso, Alberto. Pode ir embora. E você também, Caio. – retrucou Renato para Caio – Não adianta vir falar a mesma coisa que ele. Vocês me fizeram perder a paciência. Vão embora.

Os convidados apenas observavam a cena. O silêncio no ambiente era absoluto, e a tensão, palpável. Renato adiantou-se para a porta e abriu-a, pedindo mais uma vez que fossem embora.

Saíram juntos, sob o olhar dos convidados, inconformados com a atitude de Renato. Chegaram ao elevador. Alberto se adiantou:

– Eu vou pela escada.

– Faça isso – respondeu Caio de imediato – Vocês cristãos se opõem a qualquer avanço mesmo. Deixem a tecnologia pra quem que não vive na Idade Média.

Encolerizado, Alberto desceu as escadas. Nunca mais olharia na cara de Caio. “Um ateu perdido, como todos os outros. Melhor manter distância de gente assim”. Caio, por sua vez, tomou o elevador, onde refletiu que a amizade entre ele e Alberto acabara: não poderia sustentar uma relação com alguém tão irracional. “Um cristão convicto, meu Deus!”.

Cada qual seguiu sua vida e nunca mais se falaram.

Nem voltaram a se lembrar da promessa de amizade feita quando mais novos. Após a Primeira Comunhão, na casa de Caio, prometeram um ao outro – e a si mesmos – que aquela amizade continuaria firme por toda a vida. Quem sabe além dela.

– Amigos, a menos que Deus nos separe – dissera Alberto.

Boa noite

Sozinha no ponto de ônibus, Mariana esperava. A preocupação aumentava cada vez mais. Tão tarde e nada da condução passar, poderia ter problemas. Pior: se chegasse atrasada, não teria a chance de fingir já estar dormindo.

Dia cansativo. Acordara cedo, como sempre. Ela passava bastante tempo fora de casa. O tempo gasto na rua irritava seu padrasto. Ainda assim, ele permitia as saídas livres da enteada, desde que mantida sua pontualidade no horário de chegada. “Você se aproveita da minha queda por você, menina, não dá pra te negar nada”. Muito gentil, o padrasto. Mariana sentia-se tão satisfeita quanto possível com essa atitude. O que não era tanta coisa, mas o que se pode fazer? A vida é assim mesmo.

Para seu alívio, após alguns minutos viu o ônibus se aproximar. Acenando, pegou o dinheiro da passagem na mochila e subiu a bordo. Deu um boa-noite forçado ao motorista, fingindo não notar a malícia estampada no rosto do homem. Também ignorou os olhares lascivos do cobrador. Não suportava esse tipo de coisa. Mas acontecia o tempo todo. E não era nada demais, no fim das contas. Pagou e sentou-se no fundo do ônibus, vazio àquela hora. Olhou o relógio do celular: dez e meia da noite.

A hora avançada deixou-a ainda mais deprimida. Não chegaria em casa no horário, a menos que um milagre acontecesse. E milagres não acontecem. Teria que aguentar muita coisa antes de poder dormir.

Merda”.

Imaginou se a mãe já estaria deitada. Bem provável. “Ela prefere não me ver à noite, deita cedo pra evitar”. Mariana refletia sobre os motivos da mãe, oscilando entre o lamento e a compreensão, quando uma amiga da escola, Lorena, entrou no ônibus. Tentou maquiar a própria expressão, disfarçar seu estado de espírito. Manter a dignidade na frente das pessoas é muito importante.

Lorena sequer reparou no ânimo da amiga. Sentou-se ao lado de Mariana e passou a desfiar um relato completo da briga que tivera com o padrasto. As duas passavam pela mesma situação: filhas de mãe viúva que se casara depois de alguns anos da morte do marido. Por isso Lorena sempre contava seus problemas a Mariana: concebia-as, de algum modo, unidas por essa semelhança. Mariana ignorava a ligação cósmica e misteriosa, mantendo sua vida familiar completamente oculta de Lorena. E do resto do mundo, claro.

Mal prestava atenção ao que a amiga dizia, murmurando em aprovação quando parecia adequado, para disfarçar a falta de interesse. Surpreendeu-se ao perceber, depois de algum tempo, a conversa mudar de foco.

– Deve ser complicado viver com seu padrasto, não é? Sei lá, ele não te trata de um modo diferente não, por você não ser filha dele? O meu trata, é muito na cara, só minha mãe que não vê, ou não quer ver, sei lá. Mas, tudo bem, é aquilo que eu te falei, a gente tem nossos problemas, mas resolvemos tudo numa boa.

– Hum…

– Fala, Mariana! Poxa, me conta alguma coisa, uma vez na vida. Você sempre fica calada quando o assunto é você!

– Ah… – começou Mariana – Ah, Lorena, é que eu não sei o que dizer. Você sabe como é, não tem como tratar igual, mas… Poxa, ele faz o que pode por mim. Poderia ser bem pior.

– Isso é verdade. Nossa, amiga, tem cada coisa que você vê por aí, coisas que padrasto faz com enteada, não é? Não só padrasto, mas, bom… Coisa horrorosa, ainda bem que não passamos por isso.

– Pois é… Ah, isso é verdade. Ainda bem mesmo.

Lorena pareceu encorajar-se com as palavras de Mariana.

– Não sei como alguém se sujeita a uma coisa dessas. Por que não tomam alguma providência, fazem alguma coisa, não é?

– É… Desculpa, Lorena, é a minha parada, vou ter que descer. Tchau!

– Hein? Mas… Nossa, é mesmo, sua parada… Ok, tchau. Boa noite…

Aliviada por ter que descer e encerrar a conversa, Mariana tomou o caminho para casa, atenta à rua deserta. Eram tempos perigosos, não queria ser atacada. Seria uma tragédia.

Enquanto caminhava, Mariana pensou no quanto parecia fácil a Lorena “tomar providências”, como ela mesma dissera. “Todo mundo sabe sempre o que fazer. As coisas são mesmo bastante simples”.

– Ao chegar em casa, abriu o portão e viu o rosto da mãe na janela. Surpreendeu-se por encontrá-la ainda acordada.

– Oi, mãe! O que você ainda está fazendo acordada? E ele, já chegou? – perguntou Mariana, indo em direção à mãe para abraçá-la.

– O quê, filha? Ah, não… É, não, ele não chegou… – respondeu a mãe, desviando-se do abraço e evitando o olhar que a filha lhe direcionava – Vou dormir, Mariana… Até amanhã.

– Mãe… – começou Mariana. Desistiu logo em seguida – Tá certo, mãe. Boa noite.

Observou a mãe estremecer ao ouvir suas palavras. Por que usara aquelas palavras?

Merda!”.

Quando vira a mãe agir daquele modo pela primeira vez, Mariana se sentira muito magoada. Aos poucos passou a compreender melhor a atitude. Não havia mágoa agora. Só tristeza.

Pensou em tomar banho. Sentia-se muito suja. Mas, quando ia em direção ao banheiro, ouviu o portão sendo aberto. O padrasto acabara de entrar em casa. Bom, pelo menos chegara antes dele. Animou-se um pouco mais. Com isso, ele não poderia reclamar do seu atraso. Afinal, o ônibus ter demorado tanto não havia atrapalhado em nada, ainda podia fingir ter chegado há mais tempo e quem sabe não acontecesse nada. Quem sabe ele estivesse cansado e fosse direto pra cama, dormir. Pensar positivo é importante. É o que dizem por aí.

Até que ela sentiu o cheiro. Mesmo de longe, o odor era inconfundível. Assim como seu significado.

Tomaria banho depois. Foi para o quarto. De qualquer modo, sempre se sentia suja mesmo. E até que conseguisse finalmente dormir, a sensação iria piorar. O banho não serviria pra nada.

– Mariana?

O padrasto batia à porta. Não respondeu.

Merda!”

– Vim te dar boa-noite, minha filha – disse o homem, abrindo a porta e sentando-se em sua cama.

Ele sorria por antecipação.

A mãe, no fim das contas, conseguira dormir. Bom pra ela.

– …