Reencontraram-se cinco anos depois. Surpresos, cumprimentaram-se efusivamente. Eram grandes amigos: se não mantinham contato há tanto tempo, é porque a vida tem dessas coisas, os encontros e desencontros tão falados pelo poeta. Mas, de longe, haviam conservado o afeto. Certas amizades são assim: nem choram a dor da distância nem se extinguem. Estáveis como quase nada neste mundo, contentam-se em existir, sem exigir nem mesmo a saudade, que pareceria natural; continuam vivas, eternas por não serem percebidas. Nem ameaçadas.
– Como você está, Alberto? Quanto tempo, rapaz! – disse Caio, sorrindo.
– Muito tempo mesmo!
– Perdemos contato, uma pena…
– Pelo menos, nos encontramos hoje. Graças a Deus viemos nessa festa do Renato! Vamos recuperar o tempo perdido.
A conversa prosseguiu. Cinco anos era tempo demais, tinham tanto a contar! Grandes novidades em suas vidas: Caio se formara em Medicina. Agora, exercia o ofício num hospital perto de casa. Não, não arranjara nenhuma namorada, continuava muito arisco, mulher nenhuma conseguia fisgá-lo. Mas, sim, estava muito feliz.
Alberto casara, tivera um filho e passara por algumas dificuldades financeiras, mas sua situação ia melhorando aos poucos. Agora mesmo, sua vida já estava mais tranquila. Pensava até em começar uma graduação, sempre tivera o sonho de frequentar uma universidade, quem sabe não seria o momento certo? Tinha outros motivos para isso também. Aliás, Caio provavelmente sabia o motivo, não era tão difícil adivinhar…
– Que motivo é esse? Ganhar mais?
– Nada disso – respondeu Alberto, sorrindo – Até que estou bem. Não tenho curso superior, mas sou dedicado e sempre me viro. Como disse, minha vida está mais tranquila agora.
– Então o que é? Afinal, que curso você quer fazer?
– Não é óbvio, Caio? Eu quero cursar Teologia.
O constrangimento se estabeleceu de imediato.
– Teologia…?
– Mas é claro! O que você esperava que fosse? Estudar a Palavra, sempre!
– Alberto…
Caio não sabia o que dizer. Ele continuava do mesmo jeito…
– Olha, Alberto, acho que você não percebeu, mas eu não acredito nisso – soltou Caio de uma vez, sem perceber que sua frase não faria sentido para o seu interlocutor.
– Não acredita em quê?
– Na religião, Alberto. Na sua religião.
Alberto arregalou os olhos.
– O que você quer dizer com isso? Você é católico também.
– Não, não sou. Eu sou ateu, Alberto.
O silêncio, carregado de uma tensão palpável, seguiu-se àquelas palavras. O ânimo de Alberto foi mudando. Do olhar amistoso passou à expressão desconfiada.
– Ateu? É brincadeira, né?
– Não, não é brincadeira.
Alberto exasperou-se. Ateu! Caio, um ateu! Não conseguia acreditar. Toda uma vida de amizade e agora que deixavam de se ver por algum tempo ele vinha com essa?! Ateu! Então a educação recebida não tinha sido suficiente? Os exemplos, a pregação? Será que ele era tão ingrato a ponto de não acreditar no sacrifício do Filho de Deus por ele, por toda a humanidade? Alberto contorcia-se por dentro pela declaração de Caio. Da desconfiança passou à indignação.
– Não é possível! Logo você! Eu sei que você tinha dúvida, mas resolveu todas, não se lembra? Ao fazer a primeira comunhão? Você mesmo me disse isso, que tinha encontrado sua fé. Como vem me dizer agora que não crê, que é ateu?
– Alberto, eu disse aquilo pra não arrumar confusão com você e com a minha família. Fiz a primeira comunhão e declarei minha fé pra ninguém encher meu saco. Mas eu não sou católico. Não acredito em nada disso, simplesmente não faz sentido pra mim!
– Não posso aceitar uma coisa dessas! Nós crescemos juntos, irmãos de fé, e agora você vem me dizer que não acredita na Igreja. Me diga, e todas as vezes que você tomou a hóstia, você esqueceu aqueles momentos, aqueles momentos sagrados?
– Não foram sagrados para mim. Eu tomava a hóstia para seguir o protocolo. Tudo que fiz nessa religião foi por obrigação. Assim que pude assumir minha descrença, fiz isso. E estou feliz por ter feito.
Alberto encarava Caio com uma expressão de intenso desagrado. Não podia crer que o amigo tinha se deixado levar por aquele tipo de pensamento. Quando mais novos, Caio declarara o fim de suas dúvidas. Alberto o convencera, lembrava-se disso. E, talvez… fosse justamente isso! Precisava fazer a mesma coisa novamente, mostrar a ele a Verdade.
– Caio – começou Alberto, amaciando a voz, antes exaltada – Você só está confuso. Isso já aconteceu antes, não se lembra? Éramos pequenos e você duvidava da religião. Mas logo você viu que eram dúvidas sem fundamento, que a Verdade estava com Cristo. Que a Verdade é Cristo!
– Não, Alberto! Eu nunca acreditei. Todas aquelas dúvidas continuavam comigo, e se eu fingi ter me resolvido, foi pra evitar problemas.
– Eu sei que você está querendo se convencer disso. Mas não é assim e você sabe. Deus existe e ele se fez carne para morrer pelos nossos pecados e…
– Mas que inferno, Alberto! Não é possível que você acredite numa besteira dessas! Jesus morreu na cruz porque um dia Adão e Eva pecaram, é? Que culpa eu tenho disso? E como você acredita nessa história de Adão e Eva, de maçã, serpente, e todas essas idiotices? Que espécie de pecado é esse?! Fico impressionado que você continue fiel a essa doutrina de ilusões. Pensei que fosse criar um pouquinho de bom-senso com o passar dos anos
– Bom senso?! Eu não tenho bom senso?! Doutrina de ilusões?! Você é o iludido daqui, Caio. Não posso acreditar que você tenha se rendido a esse discurso ateísta. Isso é tentação do demônio!
– Claro que é. Pena que Deus não se importou em me fazer uma visita com as boas-novas demoníacas. Deve estar ocupando fazendo filho em alguma virgem por aí.
Naquele momento, já tinham se tornado o centro da atenção. A festa inteira assistia à discussão acalorada.
– Não fale desse jeito! Pois todo aquele que negar o Senhor…
– Ah, cala a boca. Não vem querer citar a Bíblia pra mim, e ainda mais citando errado.
– É a Palavra de Deus, Caio. Algo que você não poderia entender, porque está sob o domínio do Diabo!
A reação das pessoas que assistiam a briga variava. Uns sentiam-se constrangidos, olhando para os lados com sorrisos amarelos; outros ignoravam completamente o que acontecia. Havia ainda os que se divertiam imensamente e esperavam o próximo insulto. Tomavam lados. O circo estava armado.
O dono da festa, no entanto, não fazia parte de nenhum desses grupos. Observava em silêncio a discussao. Os dois trocavam insultos cada vez mais pesados e pareciam prestes a se engalfinhar numa guerra santa particular quando foram interrompidos pelo anfitrião:
– Vamos parar com essa discussão idiota.
A voz saiu calma, controlada.
– Hoje é meu aniversário. Eu chamei vocês porque são amigos meus e eu sabia que já se conheciam. Quis que se reencontrassem, me disseram que vocês tinham uma amizade muito bonita. Parece que me enganaram.
Alberto foi o primeiro a responder:
– Renato… Me desculpe, perdi o controle. Eu… Eu só não esperava que ele tivesse se deixado levar por essas ideias falsas. Ateísmo, isso é tão…
– Ora, mas eu estou muito feliz com minhas ideias, que, para usar a expressão certa, são claramente verdadeiras – rebateu Caio, hostil – Você é quem continua iludido pelo conto da carochinha, a historinha da maçã, e…
– Parem – interrompeu Renato, antes que Alberto revidasse – Olha, eu convidei os dois, e não ligo nem um pouco pro que quer que vocês acreditem. No meu aniversário, isso não importa. Deus, se existe, está convidado pra festa também. Ele, pelo menos, deve saber se comportar.
– Renato! – exclamou Alberto, estarrecido – Como você pode falar desse jeito de Deus? Eu…
– Ele ficou magoado, Renato – zombou Caio – Falar mal do personagem de RPG dele é ofensivo…
Renato perdeu o controle.
– Os dois podem ir embora, por favor – falou, alteando a voz.
Começaram a protestar ao mesmo tempo. Não é possível, como assim ir embora? Eles se desculpavam pelo ocorrido, apenas perderam a cabeça pelo que tinham escutado. Como não se descontrolar com as bobagens escutadas, ainda mais vindas de quem vieram!
– Me perdoe, Renato. Eu vou simplesmente me afastar dele. Não convivo com ateus. Não pode ser boa pessoa se não acredita em Deus. Mas não quero estragar sua festa…
– Você já quase conseguiu isso, Alberto. Pode ir embora. E você também, Caio. – retrucou Renato para Caio – Não adianta vir falar a mesma coisa que ele. Vocês me fizeram perder a paciência. Vão embora.
Os convidados apenas observavam a cena. O silêncio no ambiente era absoluto, e a tensão, palpável. Renato adiantou-se para a porta e abriu-a, pedindo mais uma vez que fossem embora.
Saíram juntos, sob o olhar dos convidados, inconformados com a atitude de Renato. Chegaram ao elevador. Alberto se adiantou:
– Eu vou pela escada.
– Faça isso – respondeu Caio de imediato – Vocês cristãos se opõem a qualquer avanço mesmo. Deixem a tecnologia pra quem que não vive na Idade Média.
Encolerizado, Alberto desceu as escadas. Nunca mais olharia na cara de Caio. “Um ateu perdido, como todos os outros. Melhor manter distância de gente assim”. Caio, por sua vez, tomou o elevador, onde refletiu que a amizade entre ele e Alberto acabara: não poderia sustentar uma relação com alguém tão irracional. “Um cristão convicto, meu Deus!”.
Cada qual seguiu sua vida e nunca mais se falaram.
Nem voltaram a se lembrar da promessa de amizade feita quando mais novos. Após a Primeira Comunhão, na casa de Caio, prometeram um ao outro – e a si mesmos – que aquela amizade continuaria firme por toda a vida. Quem sabe além dela.
– Amigos, a menos que Deus nos separe – dissera Alberto.